sexta-feira, 10 de fevereiro de 2017
Boato extrapolado: Anistia Internacional alega execuções em massa na Síria, mas não apresenta nenhuma prova
[Tradução de Sérgio Cardoso Morales] Um novo relatório da Anistia Internacional alega que o governo sírio enforcou entre 5.000 e 13.000 prisioneiros em uma prisão militar na Síria. A evidência para esta alegação é frágil, baseada em boatos de pessoas anônimas de fora da Síria. Os próprios números são extrapolações que nenhum cientista ou tribunal jamais aceitaria. É texto em estilo de reportagem de jornais sensacionalistas e de ficção desde o título – Açougue Humano – até o último parágrafo.
Mas o relatório da Anistia ainda não é sensacionalista o bastante para a mídia antissíria. Inevitavelmente, somente o número mais alto [de supostos enforcados] na estimativa das alegações da Anistia é citado. Para alguns, inclusive, este número ainda não é o bastante. A agência de notícias Associated Press, copiada por muitos repetidores, estampa a manchete: “Relatório: Pelo Menos 13.000 Enforcados em Prisão Síria Desde 2011”:
“BEIRUTE (AP) – Autoridades sírias mataram, pelo menos, 13.000 pessoas desde o início do levante de 2011 em enforcamentos em massa em uma prisão ao norte de Damasco, conhecida pelos presos como “o açougue”, disse a Anistia Internacional em um relatório terça-feira.”
Como “pelo menos, 13.000” se encaixa em um relatório já questionável que alega “13.000” como o limite máximo de uma escala tão ampla [de supostos executados]?
Antes que examinemos os detalhes, vejamos isto no “Sumário Executivo”:
“De dezembro de 2015 a dezembro de 2016, a Anistia Internacional pesquisou os padrões, a sequência e a escala das violações levadas a cabo na Prisão Militar Saydnaya (Saydnaya). No correr da investigação, a organização entrevistou 31 homens que estiveram presos em Saydnaya, quatro funcionários ou guardas que, anteriormente, trabalharam em Saydnaya, três ex-juízes sírios, três médicos que trabalharam no Hospital Militar Tishreen, quatro advogados sírios, dezessete especialistas internacionais e nacionais sobre prisões na Síria e 22 membros de famílias de pessoas que estiveram ou ainda estão detidos em Saydnaya.
(…)
Com base na evidência de pessoas que trabalharam na prisão, autoridades de Saydnaya e testemunhos de prisioneiros, a Anistia Internacional estima que entre 5.000 e 13.000 pessoas foram executadas extrajudicialmente em Saydnaya entre setembro de 2011 e dezembro de 2015.”
Há vários problemas com este relatório.
1. A maioria das testemunhas são identificadas como figuras da oposição ou “ex”-oficiais que não residem na Síria. Alguns, é dito, foram entrevistados à distância, na Síria, mas não fica claro se residem em áreas sob controle do governo ou dos rebeldes. Na página 9:
“A maioria destas entrevistas teve lugar, pessoalmente, no sul da Turquia. O resto das entrevistas foi conduzido por telefone ou por outros meios à distância, com entrevistados ainda na Síria ou com indivíduos situados no Líbano, na Jordânia, em países europeus e nos EUA."
É sabido que a oposição síria é financiada em vários bilhões de dólares há anos por governos de países estrangeiros. Ela realiza sofisticadas operações de propaganda. Estas testemunhas, todas, parecem ter interesse em condenar o governo sírio. Em nenhum momento, foi feita qualquer tentativa de fornecer uma possível visão alternativa. A Anistia encontrou as pessoas que entrevistou, contactando ONGs internacionais, como ela, e conhecidos grupos (de propaganda) da oposição financiados do exterior:
“Estes grupos incluem Urnammu pela Justiça e pelos Direitos Humanos, a Rede Síria pelos Direitos Humanos e o Instituto Sírio pela Justiça e Prestação de Contas.”
2. Os números que a Anistia fornece variam bastante. Nada é documentado em listas ou demonstrativos similares. Estão baseados, somente, em boatos e suposições de duas testemunhas: “Pessoas que trabalharam junto a autoridades da prisão de Saydnaya disseram à Anistia Internacional que execuções extrajudiciais relacionadas à crise síria começaram em setembro de 2011. Desde aquela época, a frequência com que elas foram levadas a cabo variou e cresceu. Nos primeiros quatro meses, era comum que entre sete e 20 pessoas fossem executadas a cada 10-15 dias. Nos 11 meses seguintes, entre 20 e 50 pessoas foram executadas uma vez por semana, usualmente nas noites de segunda-feira. Nos seis meses subsequentes, grupos de, entre 20 e 50 pessoas foram executados uma ou duas vezes por semana, comumente nas noites de segunda e/ou de quarta. Testemunhos de prisioneiros sugerem que as execuções foram conduzidas em um ritmo similar – ou ainda maior – até dezembro de 2015. Supondo que a taxa de execuções permanecesse a mesma que o período precedente, a Anistia Internacional estima que entre 5.000 e 13.000 pessoas foram executadas extrajudicialmente em Saydnaya entre setembro de 2011 e dezembro de 2015.” De “entre x e y”, “uma ou duas vezes por semana”, “sugerindo-se” e “supondo-se”, os números da manchete são, simplesmente, extrapolados na nota de rodapé 40 com um cálculo nas coxas; “se A fosse verdadeiro, então B seria X”: ”Estas estimativas se basearam nos seguintes cálculos. Se, entre sete e 20 pessoas foram mortas a cada 10-15 dias de setembro a dezembro de 2011, a cifra total seria entre 56 e 240 pessoas para aquele período. Se entre 20 e 50 pessoas foram mortas a cada semana entre janeiro e novembro de 2012, a cifra total seria entre 880 e 2.200 pessoas para esse período. Se entre 20 e 50 pessoas foram mortas em 222 sessões de execuções (supondo que as execuções fossem levadas a cabo duas vezes por semana duas vezes ao mês e uma vez por semana uma vez ao mês) entre dezembro de 2012 e dezembro de 2015, a cifra total seria entre 4.400 e 11.100 para aquele período. Estes cálculos produzem uma cifra mínima de 5.336, arredondada para o milhar mais próximo como 5.000, e 13.540, arredondada para o milhar mais próximo de 13.000.”
2. Não vou entrar nos detalhes das declarações das testemunhas sobre as quais o relatório foi elaborado. No mínimo, parecem exageradas e não têm como ser verificadas. Ao fim das contas, são puros boatos sobre os quais a Anistia Internacional estabelece suas conclusões. Um exemplo da página 25:
“'Hamid', um ex-oficial militar, quando foi preso em 2012, lembrou dos sons que ele ouviu à noite durante uma execução: - Havia o som de algo sendo puxado para fora, como um pedaço de madeira, não tenho certeza, e, então, você ouviria o som como que de gorgolejo. Isto duraria cerca de 10 minutos... Estávamos dormindo com o som de pessoas se asfixiando até morrerem. Isso, nessa época, era normal para mim.”
Um tribunal poderia aceitar “um som de – não tenho certeza – tipo um gorgolejo” através de paredes de concreto como prova de que um chuveiro estava ligado em algum lugar. Mas como prova de execuções?
De todas as testemunhas que a Anistia alega que entrevistou, somente duas, um ex-funcionário da prisão e um ex-juiz, descrevem execuções reais (página 25). Pelo texto das suas declarações, não fica claro se eles presenciaram, eles mesmos, qualquer enforcamento ou se só descrevem algo que lhes contaram.
3. Os números de pessoas que a Anistia alega que foram executadas são, na melhor das hipóteses, um palpite ousado. Como é que a Anistia só consegue citar muito poucos dos executados? Na página 30 de seu relatório, diz:
“Ex-prisioneiros do prédio vermelho de Saydnaya forneceram à Anistia Internacional 59 nomes de indivíduos que eles testemunharam terem sido tirados de suas celas de tarde e informados que iriam ser transferidos para prisões civis na Síria. A evidência contida neste relatório sugere, fortemente, que, de fato, estes indivíduos foram executados extrajudicialmente.”
e
“Ex-guardas da prisão e um ex-funcionário de Saydnaya, também, forneceram à Anistia Internacional o nome de 36 prisioneiros que foram executados extrajudicialmente, em Saydnaya, desde 2011.”
Estes 95, alguns dos quais podem ter sido “executados” - ou não, são os únicos que a Anistia alega ser capaz de citar. Isto é menos de 1-2% da alegação central do relatório de 5.000 a 13.000 executados. Nenhuma destas testemunhas conseguiu fornecer mais detalhes das pessoas, alegadamente, mortas?
A Anistia admite que seus números são falsos. Sob o título “Mortes Documentadas”, na página 40, ela, então, acrescenta outros nomes e números aqueles citados acima, mas estes não são das execuções:
“o número exato de mortes, em Saydnaya, é impossível de especificar. Contudo, a Rede Síria de Direitos Humanos verificou e compartilhou com a Anistia Internacional os nomes de 375 indivíduos que morreram em Saydnaya em decorrência de tortura e outros maus tratos entre março de 2011 e outubro de 2016. Destes, 317 eram civis, na data da prisão, 39 eram membros das forças armadas sírias e 19 eram membros de grupos armados não estatais. No curso da pesquisa para este relatório, a Anistia Internacional obteve os nomes de 36 outros indivíduos que morreram em resultado de tortura ou outros maus tratos em Saydnaya. Estes nome foram fornecidos à Anistia Internacional por ex-prisioneiros que testemunharam as mortes em suas celas”
A Rede Síria dos Direitos Humanos (SNHR) é um grupo sediado no Reino Unido, provavelmente com vínculos com o serviço de inteligência britânico e com fontes financeiras duvidosas. O seu sítio só diz:
“A SNHR financia seu trabalho e atividades por meio de subvenções e doações de indivíduos e instituições.”
Puxa! Isso é que é transparência!
A SNHR é conhecida por alegações bastante ridículas de vítimas causadas pelos vários lados do conflito. Não se sabe o que a SNHR considera civis – eles incluem milícias civis armadas? Mas notem que nenhum dos – na maioria – civis que a SNHR alega que morreram na prisão, diz-se que foram executados. Como é possível que uma organização frequentemente citada na mídia como uma fonte detalhada de vítimas, na Síria, não tenha registros das entre 5.000 e 13.000 pessoas que a Anistia alega que foram executadas?
4. O relatório é preenchido com fotos de satélite de antes e depois referentes a cemitérios ampliados na Síria. Ela alega que estas ampliações são indícios de valas comuns de oponentes do governo. Mas há zero evidência disso. Muitas pessoas morreram, na Síria, durante a guerra, de todos os lados do conflito. A ampliação, por exemplo, do Cemitério dos Mártires, ao sul de Damasco (pp. 29/30) dificilmente é sinal de matanças em massa de rebeldes contrários ao governo. Iriam eles ser honrados como mártires pelo lado do governo?
5. O relatório fala de prisioneiros “executados extrajudicialmente”, mas, a seguir, descreve procedimentos de tribunal (militar) e uma confirmação superior da sentença. Pode-se não gostar das leis que governam o Estado sírio, mas os tribunais e procedimentos que a Anistia descreve parecem seguir as leis e os procedimentos legais sírios. Logo, eles não são – por definição – extrajudiciais.
6. No seu Sumário Executivo, o relatório da Anistia Internacional diz que “sentenças de morte são aprovadas pelo Grande Múfti da Síria e...” Mas não há evidência apresentada de “confirmação” pelo Grande Múfti em detalhes do relatório. Na página 19, alega-se que, baseado em dois ex-funcionários da prisão e do tribunal:
“O julgamento é enviado pelo destacamento militar ao Grande Múfti e, ou para o Ministro da Defesa ou para o Chefe do Estado Maior do Exército, que tem a delegação de competência para assinar pelo presidente sírio Bashar al-Assad e que estabelece a data da execução.”
É duvidoso que o governo sírio delegaria ou mesmo informaria o Grande Múfti em casos de procedimentos legais de natureza militar ou criminal. A Anistia Internacional pode detestar que a Síria seja um Estado secular e o Grande Múfti da Síria pode ser uma autoridade civil legal para alguns seguidores da religião muçulmana sunita na Síria, mas ele não tem nenhum papel judicial oficial. De uma dissertação suíça de 2010 – Modelos de Liberdade Religiosa: Suíça, Estados Unidos e Síria:
“Na Síria, um múfti é um especialista legal e religioso (faqih e 'alim) que detém o poder de dar recomendações não obrigatórias (sing. fatwa, pl. Fatawa) em assuntos da lei islâmica.
(…)
Consultas que são, ou buscadas por um juiz da xária ou indivíduos privados, relacionadas a estatutos pessoais somente da comunidade muçulmana. Na República Árabe, não são emitidas fatawa para autoridades públicas, nem para servidores públicos individuais.
(...)
Nem a Constituição síria, nem nenhuma lei síria que eu pude encontrar se refere a um papel para o Grande Múfti em qualquer procedimento de um tribunal civil ou militar. A alegação da Anistia de que algo foi “aprovado pelo Grande Múfti da Síria” não está registrado em nenhum outro local. É muito provavelmente falsa. O Grande Múfti, xeque Ahmad Badreddin Hassoun, é um intelectual moderado, talentoso e reconhecido. Ele deveria processar a Anistia Internacional por essa calúnia.
A lei síria determina a pena de morte para certos crimes severos e violentos. Antes de 2011, execuções de fato, na Síria, eram muito raras. A maioria das sentenças de morte eram comutadas. Alegadamente, as leis foram emendadas, no fim de 2011, depois que a guerra começou, para incluir a pena de morte como uma possível punição para quem arme diretamente terroristas.
É bastante provável que o Judiciário civil e/ou militar sírio tenha emitido sentenças de morte contra “rebeldes” nacionais ou estrangeiros capturados que ele tenha considerado culpados de crimes muito severos. Se está combatendo o Estado Islâmico, al-Qaeda e outros grupos extremistas notórios por assassinatos em massa e outras atrocidades extremas. É provável que algumas dessas sentenças tenham sido executadas. Mas o governo sírio tem, também, anistiado dezenas de milhares de “rebeldes” que lutaram contra o governo, mas entregaram as armas.
As alegações do relatório da Anistia Internacional se baseiam em relatos espúrios e enviesados da oposição de fora do país. A manchete citando números de 5.000 a 13.000 pessoas são calculados com base em hipóteses sem base factual. O próprio relatório afirma que somente 36 nomes de pessoas supostamente executadas são conhecidos pela Anistia, menos do que o número de “testemunhas” que alega ter entrevistado. O alto número de execuções alegadas aliado ao baixo número de nomes é implausível.
O relatório nem mesmo atinge o nível mínimo de verossimilhança científica ou legal. É pura propaganda parcial.
Nota: Uma versão anterior deste texto confundiu a Rede Síria para os Direitos Humanos (SNHR) e o Observatório Sírio para os Direitos Humanos (SOHR). Ambos estão registrados no Reino Unido e alegam fornecer dados precisos de vítimas da Síria. Somente a SNHR é citada neste relatório da Anistia Internacional.
Diário Liberdade